Sem Coração (2023)

Título em inglês: Heartless

Países: Brasil, França, Itália

Duração: 1 h e 35 min

Gênero: Drama

Elenco principal: Maya de Vicq, Eduarda Samara, Maeve Jikings

Diretores: Nara Normande e Tião

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt26245778/


Citações: “Eita boba!”


Sinopse: Durante o verão de 1996, no litoral de Alagoas, Tamara aproveita suas últimas semanas na vila pesqueira onde mora antes de partir para estudar em Brasília. Um dia, ela avista de uma adolescente apelidada de “Sem Coração”. Ao longo do verão, Tamara sente uma atração crescente por essa menina misteriosa.


O AFLORAR DA SEXUALIDADE NO CALOR DE UM PARAÍSO.


É uma honra para mim comentar sobre um filme “rodado” no meu quintal da minha casa, numa das praias que costumo frequentar (Guaxuma) e trazendo à baila imagens familiares e nostálgicas de nossas paisagens alagoanas. “Sem Coração” é um filme que discorre sobre amadurecimento, amizade, sexualidade, desejos, etc., e faz isso desprovido de amarras, deixando aquela sensação de liberdade que o próprio ambiente praiano denota em sua essência. Foi uma obra que levou o nome do Brasil ao Festival de Veneza 2023, mesmo que em uma mostra paralela, fazendo sucesso em terras europeias.

O primeiro aspecto que chama a atenção inegavelmente é a fotografia, coadjuvada luxuosamente pela direção de arte, que utiliza muito bem os belos recursos naturais que o litoral alagoano proporciona, diga-se a flora, a fauna, o mar, as paisagens, etc., além do oportuno aproveitamento da luz natural, tanto a do sol quanto a da lua (que, diga-se de passagem, gera imagens magníficas quando refletida sobre o mar). Afirmo que quem admira esses aspectos visuais já é fisgado automaticamente nos minutos iniciais. Nesse sentido, as cenas são construídas com muito bom gosto e competência, utilizando-se de alguns recursos estilísticos para embelezar e adicionar significado a determinadas situações. Vide a cena em que tainhas são pescadas à noite atraídas pelas luzes das lanternas, e, ao mesmo tempo, finalmente as protagonistas se aproximam, numa cena muito artística, com a sobreposição do mar e dos peixes e efeitos de luz eficientes, além de uma linda trilha sonora afro que caracteriza bem a região do Brasil onde se passa a história. E por falar em trilha sonora, não poderia faltar o forró, que é tão caraterístico de Alagoas e de boa parte do Nordeste. Ademais, podem-se exaltar também as cenas aquáticas com a personagem Sem Coração e as arraias, que são belíssimas. Ainda sobre aspectos técnicos, destaco a utilização de artistas nativos, com nosso próprio sotaque (não aguento ver artistas sulistas tentando imitar nossa forma de falar – fica muito forçado na maioria das vezes) e, além do mais, dando oportunidades para, por exemplo, um filho de marisqueira e um filho de cortador de cana participarem da obra (Cidão e Galego, respectivamente). Isso apenas potencializa o lado social do filme.

O filme representa um cinema absolutamente sem preconceitos: nem de raça, nem de gênero, nem de classes sociais, pois enfoca em um grupo de adolescentes que interagem entre si, vivendo a vida em sua máxima plenitude em meio ao “paraíso”, desconsiderando quaisquer tipos de diferença que porventura existam entre eles. Os ventos que sopram lá são de amizade e liberdade, ao contrário dos que balançam as folhas dos coqueiros de outros personagens, que exalam preconceito (vide o vizinho que tem sua casa invadida: “aquele povo da grota”). A diversidade dá o tom em “Sem Coração“, e é mostrada uma suposta honestidade em sua narrativa, que anda sendo muito exaltada pela crítica especializada. Temos uma família de classe média que vive à beira-mar, com seus componentes mais “descolados” do que a maioria das estruturas familiares nordestinas, caracterizadas pelo patriarcalismo e rigidez quanto aos costumes. Na verdade, pode-se questionar essa honestidade pelos relacionamentos entre pessoas de diferentes classes sociais e orientações sexuais, principalmente por estarmos no Nordeste dos anos 90, quando não havia tanta liberdade geral como nos dias de hoje, mas essa falta de restrições nas relações sociais é justamente o que de mais belo há na conjuntura proposta.

Um dos pontos de maior interesse do filme é o desenvolvimento da sexualidade de Tamara, culminando na atração mostrada entre as protagonistas: uma filha de classe média, de pele branca, Tamara; e uma filha de pescadores, de pele escura, chamada de Sem Coração por conta de uma cicatriz que possui no peito. O interessante é que naquele microcosmo tudo parecia possível, até uma relação presumidamente improvável, promovendo uma delicada e nostálgica história em que os contrastes sociais, apesar de superados em um primeiro momento, determinam os destinos dos jovens personagens.

Ao fim, temos realmente uma obra apreciável, bem característica em aspectos audiovisuais da região Nordeste do Brasil; bem fidedigna em relação à construção das classes sociais (vide as nuances da vida dos pescadores, representados por Sem Coração e seu pai, o destino de Galego, etc.); nostálgica por mostrar o tempo em que crianças e adolescentes não viviam confinados, mergulhados em seus smartphones, e sim viviam na rua (na praia), subindo em árvores, correndo, fazendo travessuras, dançando, namorando, descobrindo a vida através de suas experiências concretas; e respeitosa por permitir a igualdade, mesmo que acabe sendo apenas relativa no recorte utilizado. Mas o melhor de tudo é a certeza de que Alagoas também tem cinema – e dos bons!

O trailer segue abaixo.

Obs.: Filme disponível na Netflix.

Adriano Zumba


TRAILER

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