Playground (2021)

4 estrelas

Título original: Un monde

País: Bélgica

Duração: 1 h e 12 min

Gênero: Drama

Elenco Principal: Maya Vanderbeque, Günter Duret, Karim Leklou

Diretora: Laura Wandel

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt11087960/


Citação: “Nem sempre você pode contar com Abel para te ajudar.”


Opinião: “Quando a escola se transforma em um ambiente hostil.”


Sinopse: Quando Nora testemunha Abel sendo intimidado por outras crianças, ela corre para protegê-lo. Mas Abel a força a permanecer em silêncio. Presa em um conflito de lealdade, Nora tenta encontrar seu lugar, dividida entre os mundos adulto e infantil.


Deve-se iniciar a análise do filme em tela, fazendo referência à tradução para o português do título original: Un monde, e o título em inglês: Playground. A história possui dois protagonistas, Nora e Abel, que são irmãos, acabam de chegar a uma nova escola e devem lidar com todos os desafios inerentes à esse fato, o que, por si só, já representa um grande desafio para os pueris, entretanto, é no playground da escola – ou no pátio – que eles conhecem o mundo real relacionado àquele microcosmo particular: do bullying regado à violência e suas implicações físicas e psicológicas. A verdade é que não a obra, que é a indicação da Bélgica ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, é uma contemplação nua e crua da crueldade das crianças e da negligência e/ou impotência e/ou ingenuidade dos adultos num playground que passa longe de ser apenas um parquinho infantil de diversões e brincadeiras entre colegas.

O filme já começa com uma cena impactante e bem incisiva que mostra o estado inicial dos personagens para contextualização e para servir de base de comparação ao longo de toda a exibição: Nora chorando e sem querer largar seu pai e seu irmão no momento de entrar na escola para seu primeiro dia de aula. Tratam-se de lágrimas “preventivas”, que revelam a agonia de alguém que julga e sente que está entrando em um espaço inseguro, repleto de desafios e sem o lastro familiar disponível às mãos como escora para as dificuldades. A reação dramática da jovem protagonista já dá pistas que algo de errado paira sobre aquele recinto. No pátio da escola, Nora, desorientada e assustada, gravita naturalmente em direção ao único rosto familiar num mar de crianças e educadores: seu amado irmão mais velho, que, por sua vez, já sofre na pele os efeitos de ser novato, ao ser violentamente importunado pelos meninos veteranos. Após vários incidentes cada vez mais violentos, a narrativa evidencia com uma crueza impressionante o isolamento de ambos em relação aos demais e leva Nora a falar para seu pai o que estava observando e vivenciando, por não ter conseguido resolver os problemas “internamente”, ou seja, acionando o corpo docente da escola. A impotência da escola e a delinquência de alguns alunos a esse ponto já fica bastante evidenciada.

Entretanto, as tentativas de ajuda de Nora apenas pioram o seu sofrimento e o do seu irmão, pois o bullying e a violência acabam se intensificando em relação a Abel e a frustram pela não resolutividade de seu ato e por receber retaliações do próprio irmão, que percebe que deve sofrer sozinho, criando assim um muro entre eles, e só pode escapar de seu destino unindo-se ao “sistema”, ou seja, tornando-se também um agressor. Aceitar ajuda significaria admitir que ele é impotente. Embora não aprendamos nada sobre as histórias de fundo dos algozes originais de Abel, pode-se apostar que eles, em algum tempo pretérito, tiveram seus próprios algozes. É interessante essa caracterização do ciclo vicioso relacionado à violência nesse contexto. Por outra linha de raciocínio, a rejeição de Abel para com Nora também é um movimento de proteção: ele está sendo violentamente intimidado e não apenas reluta em perder a credibilidade na frente de sua irmã mais nova, mas também sabe que a melhor chance de Nora de evitar um destino semelhante não é se associar a ele.

O ponto de vista infantil é preponderante no filme, e, para isso, a diretora utiliza um recurso interessante: mantém a câmera sempre na altura das crianças, mostrando apenas os troncos dos adultos e forçando-os a se abaixarem para mostrarem os rostos em cena. A câmera coloca o espectador principalmente ao lado de Nora, com uma abordagem ultra-realista, uma intensidade emocional que salta aos olhos e de uma forma visceral e desestabilizadora. Ademais, quando Nora está no primeiro plano, normalmente os personagens coadjuvantes ficam desfocados quando não têm função importante em cena. Tudo isso para potencializar a sensação de isolamento e impotência de Nora. São recursos inteligentes, úteis e muito bem utilizados para provocar sensações e aflorar sentimentos no público.

O filme é relativamente curto, mas há um propósito para isso: poupar o espectador de uma angústia e um incômodo maiores. Boa parte dos 72 minutos de exibição são intensos e brutais, que nos fazem refletir sobre a nocividade da prática do bullying e na possibilidade de provocar traumas que podem influenciar o futuro das pessoas. No entanto, o desfecho finaliza a história com segundos de amor após minutos de barbárie juvenil. Nora salva/impede o irmão de cometer um ato terrível. Sua luta se transforma em uma espécie de rendição inesperada. Nessa cena, não há diálogos e a câmera enfoca a face de Nora, capturando o exato momento em que o desespero de alguma forma se transforma em alívio. É um final belíssimo.

É imperioso destacar a atuação de Maya Vanderbeque como Nora, que é fascinante, especialmente por ser tão implacavelmente exibida através de closes constantes e intrusivos de seus olhos turvos, sua testa franzida e sua feição pensativa. Maya simplesmente consegue se expressar sem falar, e isso diferencia os grandes artistas dos demais. Prevejo um grande futuro pela frente para a jovem atriz. Deve-se destacar também a diretora Laura Wandel, que está dando seus primeiros passos no cinema com uma exploração cativante das dificuldades envolvidas em descobrir como se comportar em um microcosmo que reflete nada mais nada menos do que a sociedade, mas é composto eminentemente por pessoas com caracteres em desenvolvimento, e, portanto sujeitas a desvios: as crianças.

Para finalizar, essa história devastadora aborda a ansiedade esmagadora da experiência escolar para muitas crianças; elucida com naturalidade os horrores existenciais da sobrevivência do dia-a-dia no vazio indiferente do sistema escolar; e evidencia o vínculo visceral e quase inquebrável de um relacionamento entre irmãos, ou seja, trata-se de um filme deveras profundo que faz de sua intensidade seu grande diferencial. Não é apenas mais um filme sobre bullying. É simplesmente brutal.

O trailer com legendas em inglês segue abaixo.

Adriano Zumba


TRAILER

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