Os miseráveis (2019)

Título original: Les Misérables

País: França

Duração: 1 h e 34 min

Gêneros: Crime, drama, thriller

Elenco Principal: Damien Bonnard, Alexis Manenti, Djebril Zonga, Issa Perica

Diretor: Ladj Ly

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt10199590/


Citações:

  • “Meus amigos, lembrai-vos sempre de que não há ervas daninhas nem homens maus, e sim maus cultivadores.”
  • “O homem cria restrições que não deveriam existir.  Isso se chama escravidão!”
  • “São todos pretos aqui!”

Opinião: “Um século e meio depois, chega-se a uma conclusão perturbadora: Victor Hugo, além de escritor, foi um visionário.”


No século XVIII, bradava o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau: “o homem é produto do meio”. No século XIX, Victor Hugo aplica a ideia em seu livro, “Os miseráveis“, e, a partir daí, através de várias releituras e adaptações da obra, o mundo admite que a premissa é sempre verdadeira, não obstante o passar dos anos. O corrompimento do ser humano, que, por natureza, possui um caráter bom, em seus mais variados aspectos, e seu amoldamento às realidades nocivas que lhe são impostas, são temáticas muito ricas, que podem ser interpretadas e representadas sob óticas diversas em qualquer obra artística, e, quando desenvolvidas em ambientes hostis, normalmente convergem para o que se conhece por marginalização. A França possui uma peculiaridade que, talvez, nenhum outro país europeu apresente: a miscigenação e diversidade de seu povo, advinda, principalmente, da atividade colonizatória do país, sobretudo na África, em séculos passados. Trata-se de um país repleto de imigrantes, que, não raro se situam em localizações marginais na pirâmide social local e carregam em seus íntimos uma bagagem cultural e religiosa importante em relação a suas origens. Nesse microcosmo francófono, ou seja, unido pelo idioma francês, mas segregado pela desigualdade social e pelo eterno cultivo da semente da marginalidade e da corrupção decorrente do meio, o diretor Ladj Ly, em seu primeiro longa-metragem, encontra um universo propício para corroborar as ideias citadas mais acima. Seguem abaixo minhas impressões sobre o filme em tela.

Eis a sinopse: Stéphane é um jovem que acaba de se mudar para Montfermeil, uma comuna suburbana de Paris, e se junta ao esquadrão anticrime que atua na região. Inserido na mesma equipe de Chris e Gwada, dois policiais com métodos pouco convencionais e violentos, ele logo se vê envolvido na tensão entre as diferentes gangues existentes no local.

O filme começa com um paradoxo em relação à realidade: a felicidade de todo um país pela conquista de um importante torneio esportivo, que denota união, coesão, entendimento e comunhão entre uma população multicultural. Nesse contexto, não há ricos ou pobres, não há brancos ou negros, não há franceses ou imigrantes. Trata-se do compartilhamento de um meio tolerante e respeitoso por intermédio do regozijo, o qual funciona como uma cortina de fumaça para uma série de anomalias sociais decorrentes da desigualdade e das características pitorescas locais. Logo conhecemos Stéphane, um ente supostamente alheio à realidade que está prestes a adentrar. Trata-se de um personagem atuante, mas que também tem a função de observador do modus operandi de seus dois colegas e das diversas facções que atuam na região. Através dele, o espectador, tão alheio quanto, também observa atônito a conjuntura desenhada e a interpreta automaticamente como insalubre, como tóxica, pela intervenção de diversas “forças”. O primeiro ato lento e aparentemente despretensioso, sem emoções, resume-se a mostrar o cotidiano e ajuda sobremaneira a detalhar o ambiente em que o filme se passa, com uma apresentação meticulosa de um grande número de personagens, por vezes estereotipados pelos policiais – ver terceira citação acima -, que compõem aquele microcosmo multifacetado e potencialmente pernicioso. Um barril de pólvora prestes a explodir.

A partir do segundo ato, o filme começa a delinear seu foco baseado na tensão através do roubo de um filhote de leão. Nota 10 no aspecto da originalidade! O acontecimento dispara o gatilho para uma profusão gradativa de eventos que vão tornando o contexto cada vez mais complicado e potencialmente trágico. Uma aura obscura se torna insistente, e a sensação de perigo se avizinha à medida que os segundos de exibição vão passando. Fato após fato, os temas para reflexão vão se empilhando, cenas incômodas vão sendo exibidas, e, cada vez mais, demonstrações da influência do meio sobre as pessoas vão sendo evidenciadas. Personagens aparentemente figurativos vão ganhando importância, como o jovem Buzz e seu drone – outro observador essencial da história – e o ex-bandido e imigrante Salah, mas o enfoque deve ser dado ao delinquente juvenil Issa, cujo intérprete, Issa Perica, também em seu primeiro longa-metragem, entrega uma atuação absolutamente irretocável. Durante o desenvolvimento, a obra trabalha no sentido de propiciar a perda da governabilidade sobre as situações propostas e, também, de considerar as ações dos personagens como consequências de outras ações, retirando até a racionalidade do cerne do contexto em determinados momentos. Na verdade, tudo isso pode ser considerado como preparação do terreno para o terceiro ato, ou o desfecho, que não pode receber outro adjetivo senão espetacular. O filme caminha para a hecatombe, como é de se esperar dada a gradação de eventos ora citada. Os últimos minutos são inesquecíveis e conseguem retratar em pouco tempo uma síntese da ideia central da narrativa. Um final simplesmente apoteótico, para fechar com chave de ouro um roteiro excelente.

Ademais, devem-se destacar com louvor os aspectos visuais e sonoros exibidos no filme. Fotografia magnífica, com o predomínio de planos abertos em suas principais cenas, trilha sonora competente e a presença constante de filmagens aéreas para definir um contexto ampliado para o espectador são complementos especialíssimos na construção de “Les Miserábles“, que nada mais representa do que um chamamento à realidade com a exibição do contraste humanitário. Um momento de felicidade, entre belos monumentos parisienses, propiciado pelo esporte é apenas um refúgio ante a marginalização e a vulnerabilidade social de boa parte da população, que insiste em perdurar de geração em geração. Mais precisamente,  há séculos – e sem previsão de resolução. É a França, um país de primeiro mundo! Generalizar sobre a questão da influência do meio sobre as pessoas e a questão dos “cultivadores” talvez seja perverso, pois há exceções em tudo na vida, mas a pertinência é pujante nas frases dos pensadores históricos.

Les Miserábles” é uma obra vagamente inspirada na obra de Victor Hugo, mas inconfundivelmente e tragicamente inspirada na realidade. Em resumo, sobra apenas desesperança!

O trailer, com legendas em português, segue abaixo.

Adriano Zumba.


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