O leopardo (1963)

Título original: Il gattopardo

Título em inglês: The leopard

Países: Itália, França

Duração: 3h e 06 min

Gêneros: Drama, história

Elenco Principal: Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale

Diretor: Luchino Visconti

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt0057091/


Citações:

  • “Deixe de bobagem! Você conhece a nudez da alma… a do corpo é muito mais inocente.”
  • “Sete filhos… e eu nunca vi sequer o umbigo dela! Ela que é pecadora!”
  • “Algumas coisas precisam mudar para continuarem as mesmas.”
  • “Eu não sei enganar nem a mim mesmo… e acho que é preciso, pra quem quer enganar os outros.”
  • “O amor? Fogo ardente durante um ano… depois, 30 anos de cinzas.”

Opinião: “A história contada em forma de obra de arte.”


Antes de qualquer análise sobre o filme, é pertinente apresentar a obra literária a partir da qual o filme foi adaptado: o romance “Il Gattopardo”, do siciliano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, que retrata a decadência da aristocracia siciliana, personificada na família de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, durante o Risorgimento – movimento de unificação da Itália no século XIX que deu origem ao Reino da Itália. O livro é uma cuidadosa reconstituição histórica da Sicília no período do nascimento da Itália moderna e se baseia em personagens reais, da família do autor. Lampedusa obteve reconhecimento póstumo com sua obra-prima.

Dito isto, posso afirmar que um dos filmes que mais podem ser descritos através de uma única frase em toda história do cinema é “O leopardo“. A terceira citação mostrada mais acima – que está em negrito – representa uma síntese perfeita do que é tanto a obra literária quanto a cinematográfica. Significa que há de haver ações no sentido da manutenção de privilégios aristocráticos de uma classe inerte, potencialmente falida, mas orgulhosa de seus títulos baseados na hereditariedade, mesmo que, para isso, forme-se um contexto no qual grande corrupção moral seja requerida. Era um microcosmo em acelerada e necessária transformação social, em nome do fortalecimento de um país que se encontrava fragmentado e submetido à ação exploratória de grandes potencias mundiais. Percebe-se uma história complexa, com um importante viés político, que, por esse direcionamento, acaba por requerer, para uma melhor experiência do espectador, um pouco de conhecimento histórico antes da audiência do filme. Para corroborar essa complexidade, até o próprio título do filme esconde algum significado, pois exibe um oportuno simbolismo: alguns tipos de leopardo estavam próximos da extinção no século XIX, e o animal está mostrado no brasão da família Salina. Os leopardos aristocratas corriam perigo! Muito inteligente essa metáfora.

Se formos dissecar o filme em suas camadas constituidoras, a análise particular de cada uma delas revela uma excelência impressionante. Toda a mise-èn-cene do filme, que é a união harmônica de tudo o que se vê na tela, é fantástica. O cuidado com que todos os detalhes foram pensados e implementados é evidente. Há cenários diversificados, desde os mais ricos e bem cuidados, que apresentam muita suntuosidade, uma série de afrescos e obras de arte e lindos detalhes arquitetônicos, até cenários de guerra, natureza, lugares abandonados e locações menos abastadas, que foram tratados com a mesma meticulosidade e apresentam suas próprias características intrínsecas. O figurino, como não poderia deixar de ser, é um luxo, pela época que está sendo retratada. A direção de fotografia pega carona na junção dos demais aspectos visuais da obra e presenteia o público com belíssimas cenas. Os aspectos sonoros ficam a cargo do mestre Nino Rota, compositor de “O poderoso chefão“, por exemplo, que, apenas por essa informação, não precisa de mais apresentações e avaliações sobre o seu trabalho. É realmente primoroso! Observa-se uma montagem bastante competente e lenta, para dar ênfase a pequenos detalhes ao alongar algumas cenas, no intuito de aproveitar toda a beleza proporcionada pelo filme. Resumidamente, os aspectos cinematográficos técnicos em “O leopardo” se complementam com a chamada harmonia perfeita, pela direção excepcional de Visconti, que, por sinal, veio de uma família de aristocratas italianos e estava fazendo nada mais do que filmar as suas raízes.

Quanto ao roteiro,  nota-se  que tem como característica a homogeneidade, sem altos e baixos e carente de grandes apogeus ao longo de sua exibição. A maneira como a história foi desenvolvida preza por transmitir as suas mensagens e prover inteligibilidade principalmente através dos diálogos, que realmente são muito “informativos”. São diálogos muito ricos, com certas doses de humor, ironia e sarcasmo quando possível, e subjetivamente reveladores, sem a necessidade de prover entendimento de “mão beijada”, o que prejudica um pouco o entendimento do contexto histórico. Não se apresenta, por exemplo, quem foi Giuseppe Garibaldi, que é mencionado a todo momento na narrativa e foi, talvez, a figura histórica mais importante do Risorgimento. A despeito de contar com um elenco estrelado, o roteiro enfoca com prioridade o Príncipe Fabrizio Salina, personificado por Burt Lancaster em um show de atuação. Através dele e de suas sagazes palavras, de seus pensamentos nostálgicos e de suas ações e reações cuidadosamente pautadas em seus próprios interesses e na manutenção da posição social de sua família, mesmo que, para isso, lágrimas de infelicidade tenham que correr dos olhos de alguns – diga-se, sua filha Concheta -, a narrativa mostra a sua luta contra a “extinção” e contra o inevitável fim de uma era. Fabrizio funciona como um manipulador dentro do roteiro, e direciona o amor e a política, mesmo assistindo à diminuição de seu poder e tendo que assimilar uma nova realidade que se avizinhava. Por tudo isso, o personagem Fabrizio deve ser observado com muita atenção, pois ele é o condutor da narrativa.

Devo destacar uma cena importantíssima que é um almoço no qual Tancredi (Alain Delon), sobrinho preferido de Fabrizio e colaborador do “outro lado” nos conflitos pela unificação, flerta com a bela e ambiciosa Angelica (Claudia Cardinale) sob os olhos tristes de Concetta e a voracidade da gula do restante da família. Em um determinado momento, Angelica começa a rir compulsivamente por vários segundos e Fabrizio encerra o jantar. Angelica era filha de Calogero Sedara, um rico burguês desprezado pelo Príncipe. Nessa cena, percebe-se a magnitude da concessão que a família Salina teria que abrir em nome da manutenção de seus privilégios. Tancredi se vangloria para Angelica de suas vitórias bélicas contra o governo atual, o qual mantinha a ordem social vigente, em que ele e sua família se localizavam no topo da pirâmide, enquanto Concetta vê todo o seu amor não ser correspondido e Angelica demonstra toda a sua falta de educação. Uma rápida análise dessa cena traduz todo o viés presente na obra. Percebe-se que a união com uma família rica e socialmente emergente dada a conjuntura, mesmo que caracterizada pela falta de classe – pelo comportamento de Angelica – e acabando com a felicidade de um ente próximo e querido era absolutamente pertinente. Muitos outros exemplos da corrupção moral ora aludida podem ser vistos mais à frente na narrativa, como a indicação de Calogero Sedara, por parte de Fabrizio, a um cargo no Senado que estava sendo oferecido para ele próprio. Visconti não perdeu a oportunidade de reforçar, sempre que possível, o direcionamento de sua obra para que ficassem bem evidentes os seus propósitos.

Mesmo sendo uma história do século XIX, notam-se semelhanças em relação a conjunturas sociais e políticas posteriores que perduram até a atualidade, ou seja, o viés narrativo utilizado pode ser aplicado até os dias de hoje. As pessoas detentoras do poder trabalham em prol da manutenção de seus privilégios ad eternum, mesmo que para isso seja necessária a implementação de contravenções legais ou morais. No fim das contas o topo da pirâmide pode até ser modificado ou adaptado, mas a base continua a mesma. Uma triste constatação que pode ser extraída de uma obra cinematográfica que já possui quase 60 anos de idade. Mais uma prova que existem obras atemporais, que, no caso do filme em tela, justifica-se pela assunção da política como uma de suas temáticas principais. A nefasta e imutável política corrupta que luta pela perpetuação no poder.

O desfecho do filme é perfeito, pois funciona como consequência lógica de tudo o que foi mostrado e adota o melancólico tom da assimilação do “golpe” por parte de Fabrizio Salina, mas, como informação, o desfecho do livro é diferente: Fabrizio morre, como pode ser visto abaixo.

“E dele subsistiria tão só a recordação de um velho e colérico avô que tinha batido as botas numa tarde de julho,…”

Para complementar a experiência do leitor/espectador, o Príncipe dissera que os Salinas sempre seriam os Salinas, mas se equivocou.

O último foi ele!

O trailer, narrado em inglês, segue abaixo.

Adriano Zumba


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