Underground – Mentiras de Guerra (1995)

Título original: Underground

Países: Iugoslávia, França, Alemanha, Bulgária, República Tcheca, Hungria, Reino Unido, Estados Unidos

Duração: 2h e 47 min

Gêneros: Comédia, drama, guerra

Elenco Principal: Predrag ‘Miki’ Manojlovic, Lazar Ristovski, Mirjana Jokovic

Diretor: Emir Kusturica

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt0114787/


Citação: “A guerra só termina quando irmão mata irmão.”


Opinião: “Desequilibradamente inteligente na abordagem de sangrentos fatos históricos.”


Fazer uma análise sobre alguma obra de Kusturica é sempre um desafio, pois a maneira com a qual ele manipula a linguagem cinematográfica é especial, é mágica, e, não à toa, alguns de seus filmes podem ser considerados como pertencentes a uma corrente artística chamada de realismo mágico ou realismo fantástico. Além disso, suas obras flertam com o surrealismo, com o absurdo, com o bizarro, por ser apreciador da obra do pintor russo-judeu Marc Chagall, do qual utiliza inclusive as paletas de cores exibidas em seus filmes. Digerir obras que mostram cenas absurdas e situá-las em um determinado contexto é um exercício de perspicácia, pois tais obras testam a capacidade de interpretação do espectador. Especificamente sobre o filme em tela, além de o público ter que lidar com o estilo diferenciado do diretor, que alcança vários aspectos constituintes de uma obra cinematográfica, há a necessidade de um conhecimento histórico mínimo para uma experiência aceitável, e mais apurado para o aproveitamento máximo de todas as mensagens e todas as críticas que ela se propõe a fazer. Na época de seu lançamento, “Underground” sofreu duras críticas, principalmente a nível local, por uma suposta aproximação da narrativa de uma das partes integrantes da Guerra dos Balcãs, que dividiu a finada Iugoslávia, terra-natal do diretor, entretanto, pela minha falta de conhecimento em relação aos pormenores desse conflito, principalmente nuances étnicas e religiosas, vou me abster de entrar nessa seara em minhas impressões. Como um espectador/crítico alheio à história do país eslavo, vou me ater ao roteiro e aspectos estilísticos dessa sagaz produção desse realizador pitoresco, cujo estilo lembra bastante o do mestre Federico Felinni. Nesse sentido, só resta assistir ao filme e ficar na expectativa de experienciar outro grande trabalho construído de uma forma única e espetacular.

Eis a sinopse: “O filme conta 50 da história da Iugoslávia através da interação entre três personagens: o traficante de armas Marko, o eletricista Crni, chamado de Blacky, e a atriz Natalija, que, por sinal, formam um triângulo amoroso. Durante a Segunda Guerra, Marko, por amor a Natalija, esconde vários fabricantes de armas que vivem em Belgrado, inclusive seu amigo Blacky – também apaixonado pela moça -, num porão no subsolo de sua casa (o Underground do título do filme), e os mantém lá por 20 anos sob a alegação que a guerra ainda não acabou – e utilizando vários artifícios para manter acesa a chama do conflito. As pessoas continuam produzindo até o dia em que ouvem as notícias dizendo que os conflitos terminaram. Então, determinadas a provar o contrário, elas saem de seu esconderijo forçado.”

Underground” tenta ser didático por meio da inserção de algumas legendas ao longo de sua exibição. Através delas, nota-se que há uma clara subdivisão em três grandes blocos narrativos, além de outros menores: o primeiro se passa durante a ocupação nazista da Iugoslávia durante a Segunda Guerra Mundial; o segundo, 20 anos após o final da guerra; e o terceiro, após a morte do Marechal Tito, perdurando até a Guerra dos Balcãs. No primeiro bloco, Kusturica desenvolve com maestria aquela que, no meu entender, é uma das principais características do filme: a arte de manipular, que é personificada pelo personagem Marko. O filme parece uma festa – e já se inicia como tal -, regada a uma grande fanfarra que acompanha Blacky em quase todos os momentos. Nesse sentido, a principal virtude da obra é abordar temas espinhosos e trágicos – guerras e traições, por exemplo – de forma burlesca, transformando o drama em comédia, e criando praticamente um universo paralelo e alheio a tudo o que acontecia ao redor. É nesse contexto que se observa com muito vigor o tal realismo mágico ou fantástico. O modo de agir e pensar dos personagens e a maneira despojada como se apresentam não condizem com a conjuntura, suavizando-a e concedendo significado a outros aspectos e lugares, como o seu microcosmo particular, o tal Underground. No segundo e terceiro blocos, Kusturica lança mão da linguagem metalinguística e da significância metafórica, respectivamente, para transmitir suas mensagens, o que confirma sua habilidade em manipular a linguagem cinematográfica e concede ares imponentes à sua obra.

Muitas metáforas visuais e/ou situações simbólicas podem ser identificadas, o que pode ensejar mais de uma interpretação por parte do público, como a noiva de Jovan, filho de Blacky, voando – ou flutuando – no dia de seu casamento, o Cristo de cabeça para baixo numa cena capital do filme, a presença constante de animais em cena – que é característica do diretor -, quando se deve destacar o bombardeio ao zoológico no início do filme e a analogia dessa situação com uma realidade histórica; e, com certeza, o desfecho de todos os personagens, que não vou detalhar para não dar spoillers, no entanto, trata-se de um destino surpreendente e que contém um simbolismo absurdo dado o contexto proposto pela filme. Foi um fechamento de ouro, que, segundo li, foi a primeira cena que Kusturica imaginou na fase de gestação de sua produção. É realmente uma cena inteligentíssima, que transmite uma mensagem que prescinde de bagagem histórica mais aprimorada por parte do espectador, afinal, talvez, o fato histórico mais conhecido por todos é que a Iugoslávia foi subdivida em vários outros países (Sérvia, Bósnia e Herzegovina, Croácia, etc.) e apenas isso é necessário para a completa compreensão. Na verdade, a bagagem mais exigida pelo filme é a artística, para que o espectador se deixe levar pela jocosa e absurda narrativa com poucos sobressaltos, todavia, como se pode depreender, conhecer a história proporciona uma experiência mais rica.

Sobre as atuações do elenco, a única nota que se pode conceder é a máxima. O trio de protagonistas é perfeito, com destaque para Pedrag Manojlovic, que lembra até o Mr. Bean em determinados momentos, e possui uma linguagem corporal e facial muito interessante, personificando muito bem o que é requerido de seu personagem. Blacky como um fanático herói de guerra e Natalija como uma mulher não confiável e manipuladora contribuem fortemente para a excelência apresentada. A química entre os três ganha destaque e cresce à medida que o filme vai se desenvolvendo, promovendo, juntamente com o roteiro envolvente, um forte enlace em seu público no tocante a atenção dispensada. Mesmo em quase 3 horas de exibição, o filme não fica enfadonho, pois essa loucura organizada chamada “Underground – Mentiras de guerra“, com todas as suas qualidades, não permite em hipótese alguma.

Ao fim só restam aplausos de admiração pela capacidade de Kusturica de promover mais uma de suas histórias de forma tão singular. Acho que conhecer todas as vertentes do cinema é algo essencial para os amantes da sétima arte. O trabalho do cineasta iugoslavo é diferente, mas nem por isso deixa de ser notável. Palma de Ouro em Cannes com muito louvor.

Ahh! Para terminar, é importante manter os olhos no macaco Soni, pois ele é um personagem importantíssimo no filme.

O trailer segue abaixo.

Adriano Zumba


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