Nós duas (2019)

Título original: Deux

Título em inglês: Two of us

Países: França, Luxemburgo, Bélgica

Duração: 1 h e 39 min

Gênero: Drama

Elenco Principal: Barbara Sukowa, Martine Chevallier, Léa Drucker

Diretor: Filippo Meneghetti

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt9845110/


Citação: “Você tem alguma coisa contra velhas sapatões?”


Opinião: “Um belo apelo à consideração da natureza humana.”


À primeira vista, “Nós duas” tem um grande mérito: a despeito de sua temática macro, a homossexualidade e suas implicações, ser bastante retratada pelo cinema, principalmente na última década, o que, diga-se de passagem, coloca a obra em um lugar comum por diversos momentos, a especialização – o detalhamento – dos assuntos inerentes a sua corrente narrativa principal atribui um caráter original muito pertinente e pouco visto em outras obras com a mesma temática. O amor cotidianamente já possui um terreno espinhoso para sua exteriorização e a inserção de desafios adicionais proposta pela filme, que podem ser considerados como tabus nas mais variadas sociedades, provê uma história de cunho altamente dramático e reflexivo. No mesmo contexto, a homossexualidade, a velhice e o fato de os personagens principais serem mulheres, representam uma combinação potencialmente angustiante e provocam um turbilhão de sentimentos, essencialmente por seu desenvolvimento primoroso e a utilização de recursos estilísticos e de filmagem para reforçar as emoções e aproveitar o que de melhor a interpretação da dupla de protagonistas tem a oferecer. Após a exibição, veio à mente dois filmes, cujas narrativas possuem algumas similaridades com a do filme em tela: o paraguaio “As Herdeiras” (2018) e o francês/austríaco “Amor” (2012). Seguem abaixo minhas impressões sobre esse corajoso filme francês, que representará o país no Oscar de melhor filme internacional em 2021.

Eis a sinopse: “Mado – ou Madeleine – e Nina são idosas e companheiras afetivas há décadas e se conhecem desde criança. Para a sociedade, incluindo os filhos de Mado, elas são apenas vizinhas e amigas e, como se pode depreender, o casal vive em um mundo às escondidas. Para recomeçar a vida de forma livre, elas pretendem vender o apartamento de Mado e comprar um imóvel em Roma, a cidade onde se conheceram, para aproveitarem o restante de suas vidas sem amarras, entretanto, Mado hesita em contar a seus filhos sobre suas pretensões e sua orientação sexual – para a desaprovação de Nina. Nesse contexto, um evento trágico acontece e muda o rumo das coisas, deixando o relacionamento em uma situação ainda mais difícil.”

Em seu primeiro longa-metragem, o diretor Filippo Meneghetti deixou um cartão de visitas bastante atraente. Observa-se no trabalho do cineasta grande sensibilidade para retratar o amor belo e verdadeiro de forma impessoal, sem quaisquer preocupações com características ou escolhas das pessoas que vivenciam tal sentimento, e ousadia extrema ao se preocupar em exibir realidades normalmente ignoradas ou ocultas, principalmente por um suposto constrangimento regado a toneladas de preconceito que a simples exibição dessas nuances proporciona. A sexualidade dos idosos é normalmente tratada com desdém por grande parte das sociedades, como se as pessoas fossem assexuadas ou simplesmente “não têm mais idade para isso”, entretanto, no filme de Meneghetti, as protagonistas têm desejo e paixão mútuos e fortes – e, inclusive, fazem sexo como qualquer outro casal. Trata-se de um filme contra o tolhimento da natureza humana por qualquer motivação.

Constatei que o filme pode ser subdivido em alguns blocos narrativos, cuja linha de raciocínio principal de cada um deles é introduzida por um evento específico. Sem identificar tais blocos ou eventos explicitamente nesse texto, saliento que o filme varia seu grau de dramaticidade entre essas subdivisões. Inicialmente, há a necessidade de contextualizar as personagens dentro da narrativa e construir o mundo em comum que elas compartilham mostrando sobretudo amor e cumplicidade de uma forma muito bonita. A família de Mado e seus fantasmas do passado, relativos ao falecido marido da protagonista, são apresentados sem pudor algum como potenciais dificultadores de qualquer processo de aceitação quanto à orientação sexual ou mudança de ares de sua genitora, principalmente pelo comportamento de Frédéric, filho de Mado. Assim, surge – e persiste – em Madeleine uma certa incapacidade de implementar os interesses do relacionamento amoroso do qual faz parte, o que acende o pavio do principal fato gerador de tensões e dramas da narrativa: a insatisfação de Nina, que, até então atuava como uma coadjuvante de luxo na obra. Após uma séria enfermidade acometer Mado, Nina é subitamente excluída da vida de sua amada e a busca – até obsessiva – pela reaproximação, revestida de remorso imensurável, considerando que ninguém sabe que elas são amantes é o principal ponto de interesse da obra. Nesse ponto, a segunda metade do filme, a habilidade da direção é destacada, pois, com Mado impossibilitada de se comunicar, o enfoque em seus olhos e seu rosto, aliado à grande expressividade de sua intérprete, Martine Chevallier, transformam a experiência do público em algo bastante sensitivo e poderoso, trazendo à tona tormentas extremas e altamente emocionais. Nina se torna o enfoque da narrativa e sua intérprete, Barbara Sukowa, brilha com uma atuação intensa e decidida para entregar gana e força à sua personagem em sua tarefa hercúlea contra o preconceito e a favor do amor. Nota-se que a separação promovida pelo destino é quase insuportável de ser experienciada, mas as ações determinadas e às vezes desesperadas que são lançadas mão para a reconciliação física e espiritual entre as protagonistas são deveras comoventes e apresentam um amor tão ardente, tão necessário, que é impossível não haver uma forte conexão entre o espectador e os personagens.

Por tudo isso, posso afirmar que “Nós duas” é uma obra perfeitamente bela, pela cinematografia excelente, que permite a imersão do público na alma e no coração do relacionamento proposto, mas também por considerar duas mulheres mais velhas como seres sexuais em todos os seus anseios, buscando quebrar paradigmas e instigar reflexões. Apoiada em ótimos diálogos e situações complexas, o filme machuca o âmago das personagens – e do público – em boa parte de sua exibição, todavia, sempre que possível, mergulha no mar de singeleza e delicadeza, que só o mais belo dos sentimentos tem o condão de permitir. A despeito do lugar comum em que se encontra, trata-se de um filme potencialmente inesquecível.

O trailer, com legendas em inglês, segue abaixo.

Adriano Zumba


8 comentários Adicione o seu

  1. Giovanna Grossi disse:

    Extremamente sensivel. E notei nuances espirituais, amei!

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  2. Anônimo disse:

    Não está mais disponível? Estava até ontem, quase assisti.

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    1. Está agora no post dos 15 semifinalistas do Oscar.

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  3. Anônimo disse:

    Obrigada.

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  4. Solange Pinho disse:

    Obrigada.

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