Jallikattu (2019)

País: Índia

Duração: 1 h e 35 min

Gêneros: Crime, drama

Elenco Principal: Antony Varghese, Chemban Vinod Jose, Sabumon Abdusamad

Diretor: Lijo Jose Pellissery

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt8721556/


Citação:

– Você sabe qual é a carne mais saborosa do mundo?

– Não. Qual?

– A carne humana.


Opinião: “Uma imersiva experiência audiovisual  terrivelmente impactante e perturbadora.”


A Índia é mesmo um país peculiar, pois suas tradições e sua cultura, que são eminentemente originadas a partir de motivações religiosas, são mesmo bastante curiosas, entre outros adjetivos. Desse contexto, deriva o machismo disseminado pelos quatro cantos do país, principalmente em áreas mais rurais e afastadas das grandes metrópoles, e também um “esporte” chamado Jallikattu, que, há mais de dois milênios, condecora emocionalmente a seus vencedores com a pecha de homem poderoso, homem com H maiúsculo, pois consiste em domar touros selvagens – o que não é preciso citar que requer extrema coragem dos competidores. Esse esporte é parte integrante da cultura do Estado de Tamil Nadu e simboliza a virilidade masculina – e isso é muito importante em um país fortemente misógino. Para ilustrar, segue abaixo uma imagem do Jallikattu.

Se o espectador espera um filme que se baseie no esporte ora citado, talvez fique um pouco frustrado, pois a conjuntura que é construída é diferente, entretanto, o filme utiliza o ato de perseguir o touro como seu fio condutor e há uma perspectiva implícita de afirmação da masculinidade dos personagens homens. No meu entender, essas são as únicas semelhanças entre a narrativa e o Jallikattu. A escolha desse título gerou polêmica na Índia, principalmente entre os habitantes mais tradicionais, que viram deturpados os objetivos do esporte após a exibição do filme. Ao contrário das touradas espanholas, um esporte similar, no Jallikattu, os animais não são mortos. Realmente foi um título mal escolhido, mas que, de longe,  guarda alguma relação semântica com o que é exibido pelo filme.

Eis a sinopse: “Em uma aldeia rural da Índia, um touro consegue escapar segundos antes de seu abate, causa um verdadeiro caos nas redondezas e faz com que os moradores do vilarejo exteriorizem seus lados mais selvagens e violentos.”

Quem conhece o cinema indiano, sabe que o diretor Lijo Jose Pellissery possui um estilo próprio de fazer cinema, mostrando um trabalho por vezes visceral, enervante e promovendo uma experiência visual e sonora absolutamente imersiva para seu público. Em “Jallikattu” talvez ele tenha alcançado o clímax de seu cinema, ao demonstrar grande domínio na manipulação da linguagem cinematográfica, no intuito de mostrar visuais angustiantes auxiliados por efeitos sonoros muitas vezes apavorantes. O interessante desse estilo é que ele é necessário para a consecução dos objetivos do filme. As palavras são usadas com bastante parcimônia na segunda metade da exibição, pois, afinal, talvez elas não conseguiriam descrever o que a narrativa se propõe a transmitir. O espectador deve se preparar para absorver uma mensagem audiovisual muito eficiente, mas absolutamente desconcertante.

Logo nos primeiros segundos de filme, uma composição de imagens e sons perturbadores já dão uma ideia da experiência que será proporcionada – e do estilo que será lançado mão -, entretanto, o transcorrer inicial da exibição já promove um certo incômodo, principalmente por mostrar cenas atenuadas de abates de animais, que são realmente difíceis de assistir, principalmente para pessoas mais sensíveis. Definitivamente, “Jallikattu” não é um filme para pessoas sensíveis! É interessante notar que a violência que permeia a narrativa do início ao fim aumenta gradativamente na mesma medida em que o caos é incrementado e, com isso, os instintos primitivos e selvagens dos homens tomam corpo na mesma proporção. É bom salientar que o filme não aposta muito em uma história formal, e sim na dramatização de uma situação, de um contexto, cuja mensagem da transformação do ser humano racional em animal irracional é automática e metaforicamente representa o espelho do machismo internalizado em algumas sociedades: o “machismo mais original possível” que impulsiona a espécie masculina apenas através de seus hormônios. O filme não se furta de apresentar a magnitude da destruição de que tal suposta supremacia masculina é capaz. A presença de mulheres – e não apenas o touro – como pacientes das ações violentas de diversos tipos, psicológica, física, sexual, etc., advindas dos homens ao longo da narrativa também corrobora perfeitamente com o rumo que a história segue e a ideia dramatizada.

Não é exagero afirmar que Lijo Jose Pellissery faz o espectador sentir a sua narrativa e consegue esta proeza através da implementação  excelente de vários recursos técnicos. Nota-se claramente os movimentos de câmera são ousados e diferentes – vide a cena da correria na ponte pênsil, por exemplo -; os cortes rápidos promovem uma certa desorientação e desviam o foco de algumas cenas, causando uma certa perturbação; e os recursos sonoros do filme são importantíssimos no conjunto da obra, potencializando sobremaneira – e com sons não convencionais – as sensações despertadas pela jornada. As lentes de Pellissery são capazes de prender o público exatamente no que precisa ser assistido, sem desvios, sem subterfúgios. Não é exagero também salientar que os visuais apresentados são espantosos. Algumas cenas são emblemáticas, como a cena do touro no poço, que posso considerar como um espetáculo audiovisual, e o desfecho [spoiller] com a impressionante e aterrorizante torre de homens empilhados uns sobre os outros, através da qual é apagado o último vestígio da linha que separa os animais dos humanos, os quais começam a gritar e rugir deixando escapar toda a monstruosidade presente no fundo de suas almas. No poço de lama, os homens e o animal se tornam um só! Essa imagem é mostrada abaixo. Não foi à toa que, após o seu final, o filme foi ovacionado com aplausos por vários minutos no Festival de Toronto em 2019. Trata-se de um final apoteótico, primoroso e impactante como poucos, para deixar o público atônito. Até os créditos são oportunos e não devem ser dispensados.

Ao fim, cada espectador vai perceber que as palavras são até desimportantes em “Jallikattu“, pois a obra se enquadra no rol de experiências sensoriais proporcionadas pelo cinema. Não se pode negar que é um filme extramente difícil de experienciar, mas, trata-se de um incrível exemplo de manipulação sagaz da linguagem do cinema para demonstrar vieses tão incômodos e ainda tão presentes no mundo, mesmo estando em pleno século XXI. É um filme absolutamente pertinente, mas é bom salientar que raw cinema – ou cinema cru – é para poucos, para muito poucos!

O trailer, com legendas em inglês, segue abaixo.

Adriano Zumba


TRAILER

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