Kes (1969)

País: Reino Unido

Duração: 1 h e 51 min

Gêneros: Drama, família

Diretor: Ken Loach

Elenco Principal: David Bradley, Brian Glover, Freddie Fletcher

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt0064541/


Opinião: “O realismo social tão abordado por Loach em sua carreira dava os seus primeiros passos.”


Considerado por muitos a obra de formação do magnífico diretor inglês Ken Loach, “Kes” não obteve muita representatividade na época de seu lançamento, mas, com o passar do tempo, tornou-se um chamado filme cult, pela abordagem sincera e honesta em relação a suas temáticas e pela importância que Loach assumiu com o desenvolvimento de suas narrativas preocupadas com aspectos humanos e sociais principalmente das classes trabalhadoras das mais diversas sociedades mundiais e nos mais diversos momentos temporais da história. “Kes“, por ser apenas a segundo longa-metragem do diretor, é menos intenso em relação à crítica social, sem, no entanto, abandoná-la, e assegura fortemente seus méritos por intermédio do chamado cine-denúncia, que aborda assuntos atuais como o bullying – notem que o filme é de 1969 -, critica a obtenção de respeito com base na violência em ambientes escolares da época e o trabalho infantil, desenvolve problemas relacionados à falta de estruturação da família,  e não se furta de provocar emoções através da história de um menino e um falcão. Filme muito belo, poético e com imagens inesquecíveis, apesar de aludir a uma conjuntura nociva ao extremo.

Eis a sinopse: “Billy Casper é um menino atormentado da classe trabalhadora, que é submetido a abusos tanto na escola como em casa. Filho de uma mãe solteira, a existência de Billy é sombria, até quando ele se interessa por falcoaria e começa a treinar uma ave que encontra em uma fazenda próxima. Enquanto Billy adquire uma ligação estreita com o falcão, a sua vida miserável e o ambiente hostil provam ser um desafio para o menino e seu amigo alado”

Kes” é composto por um turbilhão de temáticas, como salientado no primeiro parágrafo – todas trabalhadas com profundidade, não obstante umas aparecerem mais do que outras no contexto proposto. A principal delas talvez seja o refúgio encontrado por Casper para seus problemas sociais e familiares através do desenvolvimento de sua amizade com seu falcão, Kes. A interação entre os dois personagens é pouco explorada, mas é muito relevante, pois aspectos que influenciam toda a narrativa aparecem juntamente com o aparecimento de Kes na vida de Casper. Destaco duas cenas: a que Casper conta a seus colegas de classe seu modus operandi em relação ao treinamento de Kes – e que mostra a importância do falcão na vida da criança -, bem como a cena na qual o professor demonstra interesse extremo pelo caso e vai assistir pessoalmente a Kasper interagindo com Kes. Tais cenas são absolutamente memoráveis pela singeleza com que são construídas. Por sinal, a grande virtude do diretor foi ter conseguido relatar com imagens a ingênua e sincera dependência emocional de uma criança em relação a um animal irracional, que, de certa forma, retribui a amizade e dedicação de Casper ao se deixar ser treinado sem maiores problemas e ao não fugir quando submetido a “vôos livres”, apesar da preocupação extrema do garoto. Já assistimos a filmes com essa pegada principalmente com a utilização de cães, que, normalmente, proporcionam muita emoção pela autenticidade e verossimilhança transmitidas na relação. O resultado da utilização de um falcão, um animal considerado selvagem, foi realmente especial e abrilhanta sobremaneira o filme.

Como também visto no primeiro parágrafo, a crítica a determinados aspectos sociais é importante. Os contextos escolar e familiar são construídos como ambientes tóxicos ao protagonista. Na verdade, uma característica é desenvolvida e/ou denunciada nos dois âmbitos, a violência física e emocional/psicológica, e duas são desenvolvidas individualmente em cada um dos dois contextos, o autoritarismo na escola, e a ausência na família, além de outros pontos de interesse. Loach identifica a falta de uma família pautada no amor, carinho e respeito como um dos maiores influenciadores do comportamento rebelde e irrequieto de Casper no filme. Nada mais pertinente, afinal, é a família que alicerça o caráter das pessoas. No entanto, como se depreende, há de haver a assunção de uma responsabilidade compartilhada pelo “estragamento” de Casper. Na narrativa, a escola é o local onde a maioria das situações angustiantes acontecem. As cenas do hilário treinador de futebol e do uso da palmatoria são emblemáticas e poderosas no sentido de desnudar o caráter violento da escola como instituição de ensino daquela época. Para obter a dádiva do conhecimento atraves da escola, os alunos tinham que se submeter a situações degradantes, principalmente aqueles que insistiam em “nadar contra a maré”. Loach interliga esses dois âmbitos, entre outros, para mostrar uma certa marginalização imposta Casper pelos meios que frequenta e pelas pessoas com quem convive.

Em fins dos anos 60, uma década que mudou os rumos da produção cinematográfica mundial com a Nouvelle Vague, Loach, claramente, entrou na “onda francesa” e sua obra parece ter sido fortemente influenciada pelo filme “Os incompreendidos” (1959) de François Truffaut, ao inserir uma criança vulnerável em meio a um tsunami de graves problemas sociais que a cercam, entretanto, ele oferece uma esperança ao protagonista, a amizade com o falcão, diferentemente da obra do grande mestre francês, que transmite uma maior falta de rumos. Contudo, “Kes“, apesar de se destacar por fazer a alusão a bons sentimentos evidenciados na relação entre o animal racional e o irracional, utiliza uma certa “crueza desumana” em seu desfecho, que, diga-se de passagem, corrobora perfeitamente com a tal “conjuntura nociva” ora citada. Ken Loach já demonstrava que não buscaria finais felizes em suas obras, o que se tornaria um padrão em sua filmografia – com algumas exceções, é claro -, pois os objetivos de seu cinema seriam outros: além de defender sua idolatrada ideologia socialista, mostrar patologias e/ou anomalias sociais/familiares e a destruição das políticas públicas de bem-estar social, principalmente em relação ao proletariado. Filmes com esse viés normalmente não têm final feliz, mesmo tendo sido construídos de forma singela, como “Kes“, por exemplo. É a poesia em meio ao caos!

O trailer segue abaixo.

Adriano Zumba.


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